Sobre periferias: Novos conflitos no Brasil contemporâneo
Neiva Vieira da Cunha
Gabriel Feltran
(Organizadores)
Formato: 17×24cm | 224p. | 2013
Favela, periferia, margem são, por vezes, sinônimos intercambiáveis da histórica precariedade urbana brasileira. Mas eles são também nomes defendidos, definidos. Favela existe há mais de um século no plano social e na geografia urbana e há mais de duas décadas no domínio da reflexão acadêmica. Continua saindo da sombra.
Sobre periferia: Novos conflitos no Brasil Contemporâneo é dos livros de uma boa camada de obras e de artigos que buscam desvelar um dos temas mais promissores de certo estilo de antropologia urbana que vem sendo realizada no Brasil. Não tendo sido o primeiro e nem com certeza o último, o livro reúne nomes que vêm marcando passo nos debates sobre margens urbanas. Depois de ler a proposta, fica claro: caminhar da reflexão sobre fronteiras sociogeográficas – das periferias – para chegar a uma proposta de “cartografia de perspectivas analíticas” – de margens.
A obra é composta em três partes diferentes: drogas, crime, violência e política; expressividade, religiosidade e gestão social; Estado, território, moradia e ação social.
A discussão se inicia, pela mão de Taniele Rui, com as fronteiras dos espaços urbanos do crack. A autora convence que diferentes lugares não são meros invólucros e cenários do consumo; diferentes territórios criam parâmetros de interação e novas relações. Três territorialidades distintas no uso do crack, em cidades do estado de São Paulo, apontam contrastes nas tensões que conjugam pessoas, socialidade e cidade, tensões com agentes que ora acolhem, ora punem esses “corpos abjetos”. O espaço do consumo
faz diferença, diz Rui. Passamos em seguida à leitura possível do limite (ou “tensão liminar”) com uma circulação intermitente de pessoas dentro e fora de albergues na cidade de São Paulo. Aqui, a aparente desespecificidade do público é, paradoxalmente, a especificidade do albergue. Daniel De Lucca Costa sintetiza: esta é uma instituição tão hostil quanto hospitaleira; ela acolhe enquanto expulsa. No texto seguinte, Diogo Lyra explora o tema da punição entre jovens traficantes conferindo inteligibilidade ao que seria do plano (moral) do ininteligível: a coesão na tensão e na violência. O caminho é trilhado no nível das palavras trocadas, ajudando o autor a esclarecer uma miríade de noções emic que dão sentido ao que designa como subjetividades do “sujeito-homem”. A primeira parte termina com uma cartografia da margem, proposta por Leilah Landim, que ruma através da leitura de organizações civis, elegendo como campo de atuação o tema-problema “violência urbana” no Rio de Janeiro.
“Artes da periferia”, por Rose Hikiji e Carolina Caffé, continua evidenciando a ploriferação de expressões e de desempenhos culturais que parece oferecer novo contexto a disputas pela representação de lugares e pessoas na margem. Estado, associações e gestão começam a ganhar textura analítica por intermédio da análise etnográfica de políticas públicas (Ana Paula Galdeano), mas também já estavam nos espaços urbanos do crack, interseccionados por uma pletora de atores institucionais (Taniele Rui). Galdeano descreve, num texto rigoroso e criativo, como a política de segurança pública foi colonizando as políticas de habitação, reforma e lazer em São Paulo na década de 2000. Múltiplos projetos e ativismos que passam pela gestão social da violência, em locais onde se faz presente o Primeiro Comando da Capital (PCC), passam por novas interseções de polícia, religião e partidos, que ora forçam a reintegração da ordem, ora a contestam. A mobilização social e política nas periferias está longe de ser estável. Wania Mesquita apresenta formas de entendimento, compreensão e tolerância moral entre os agentes do crime e os pentecostais, enquanto Nina Rosas, que encerra a segunda parte da obra, sublinha como “uma massa de fiéis empobrecidos” e as obras de assistência social em geral têm sido instrumentalizadas para a obtenção de sucesso pessoal e afirmação de carreiras religiosas e partidárias.
A discussão das fronteiras e das passagens fica clara no caso dos projetos de “pacificação”policial de favelas, apresentado e discutido por Márcia Leite e Machado da Silva, com novas formas de regulação que facilmente se sobrepõem à lei. A análise tenta explicar o cruzamento entre barreiras mentais invisíveis e a segregação socioterritorial. Os autores sugerem que a contenção e os limites da circulação de jovens favelados na cidade carioca parecem prepará-los para lidar com o desconforto e a insegurança das interações cotidianas urbanas. Isto é feito através de “mapas de antecipação”, conceito tomado de empréstimo de Jeganathan (no texto “Checkpoint: anthropology, identity, and the State”, de V. Das & D. Poole (orgs.), em Anthropology in the margins of the State), que envolve uma cartografia de estigmas e preconceitos. Por eles, polícia e Estado são percebidos em sua face repressiva, longe do que seria a missão original de provisão de serviços públicos e equipamentos urbanos.
Isabel Georges e Yumi dos Santos usam a categoria beckeriana de “emprendedor moral” para descrever políticas sociais terceirizadas de assistência a famílias em São Paulo. Concluem que uma gestão sexuada pode produzir, especialmente nas mulheres assistidas, novas formas de desigualdade. Luciana do Lago vem nos falar de empreendimentos autogeridos nas periferias de São Paulo e Porto Alegre e das dificuldades manifestas deste tipo de associativismo. A autora demonstra serem poucos os governos locais, as municipalidades, que utilizam instrumentos legais para regular ou reduzir a ação privada que tende a alimentar a especulação fundiária. Por fim, Marluci Menezes e Tânia Ramos apresentam um caso em Lisboa. Descrevem minuciosamente, no decorrer do tempo, a edificação e as transformações urbanas no bairro de Chelas. As autoras defendem que a associação representacional frequente entre insegurança e um território específico é (re)criadora de periferia urbana, demarcando-a fatalmente na cidade, mesmo que subvertendo o plano urbanístico-social original.
No seu conjunto, esta é uma dessas coletâneas que resulta do acúmulo de experiências, tanto empíricas quanto conceituais, que têm transformado em objeto de pesquisa antropológica os espaços urbanos e a vida em cidades. Como refere Birman na abertura do livro, todos os autores da obra recusam o dualismo que oporia centro e periferia. A aposta está na ampliação e não no estreitamento de propostas.
Pela sua complexidade, entender as margens exige diluição de fronteiras estanques e previamente dadas ao observador desavisado. A cidade separada em duas (proposta no famoso livro de Zuenir Ventura, Cidade Partida), que se tornou uma metáfora de uso cognitivo fácil, sobretudo para o caso do Rio de Janeiro, não reúne consistência analítica. Ela é uma performance em si mesma (ainda que possa ter efeitos reais) e só nessa medida requer atenção. Como bem advertem Neiva Vieira da Cunha e Gabriel de Santis Feltran, discutir periferias contemporâneas implica conhecer o labor do tempo no espaço social, o mundo do trabalho, socialidades locais e circulações, configurações públicas de conflitos sociais e políticos emergentes, mas também diferentes sentimentos morais, demandas por respeito, reconhecimento, solidariedade. Que não restem dúvidas depois de ler o livro: periferia é um conceito polissêmico e os territórios da pobreza são amplamente heterogêneos. Mas dizer isto não é dizer tudo. O trabalho teórico começa aqui.
Resenha de Susana Durão, Professora no IFCH/Unicamp. [Leia no site da Scielo].
Durante dois anos Neiva Vieira da Cunha e Gabriel Feltran coordenaram o Grupo de Trabalho “Sobre Periferias: novos conflitos no espaço público” na Anpocs (2010-2011). Mais, muito mais do que responder a um protocolo da vida acadêmica, esse grupo de trabalho terminou por operar como um polo de gravitação importante de pesquisadores que, vindos de áreas disciplinares diferentes, tratando temas variados, com abordagens igualmente múltiplas, empenharam-se em decifrar as mutações recentes pelas quais tem passado as periferias urbanas de nossas cidades. A primorosa seleção de textos que este livro nos entrega não é tão simplesmente uma coletânea de “artigos interessantes”. No cruzamento das várias pesquisas e naquilo que a escrita é capaz de fazer ver e dar forma ao que acontece nas “margens” das cidades, vai-se desenhando as tramas multifacetadas dos mundos urbanos e é nelas que se alojam as questões e desafios que interpelam as categorias cognitivas e normativas que, por muito tempo, primaram no campo dos estudos urbanos – e das ciências sociais em geral. Como Neiva e Gabriel dizem logo nas primeiras linhas da introdução, este livro nasceu de uma “inquietação analítica” face ao descompasso entre a segmentação disciplinar e temática nos estudos das periferias urbanas e aquilo que os pesquisadores encontravam em seus respectivos trabalhos de campo e que transbordava, por todos os lados e, nesse sentido, implodia essas segmentações.
É uma inquietação analítica, poderíamos ainda dizer, que se desdobra em uma aposta na importância da experimentação etnográfica que, seguindo os fios cruzados das tramas da cidade, vai descortinando as linhas de força que atravessam os mundos urbanos, vistos pelo angulo de suas “margens”. Os temas clássicos dos estudos urbanos estão todos contemplados – família, trabalho, religião, politica, violência. Porém comparecem aqui não como objetos pré-codificados de acordo com os protocolos das definições disciplinares, mas, sim, como campos da experiência social (e urbana) que os autores tratam de prospectar, explorando a teia de relações que não cabem em fronteiras definidas, que se inscrevem em um mundo social multifacetado, que tecem e se tecem nas tramas da cidade e é justamente nelas que as periferias vão surgindo como realidades múltiplas. E é também nessas tramas que a pulsação da vida urbana se deixa ver no entrecruzamento daquilo que os pesquisadores fazem ver, trabalhando as perspectivas que se abrem a partir de seus respectivos “postos de observação”. Mas é nisso que eu não hesitaria em dizer que essa experimentação etnográfica mostra toda a sua potência – potência cognitiva, potência crítica – justamente por esse empreendimento que, atento às “histórias minúsculas” de que é feita a vida social, nos permitem entender algo dos ordenamentos sociais que vem sendo produzidos, entre conflitos e acomodações, violências e acordos normativos, entre capturas e linhas de fuga, bloqueios e potências, no cenário de nossas cidades.
Vera da Silva Telles
Departamento de Sociologia da USP
Laboratório de Pesquisa Social, LAPS-USP[Leia no site da pesquisadora]
Os pesquisadores valorizam o dinamismo das fronteiras, apurando alguns domínios, já trabalhados durante décadas nas Ciências Sociais, de forma inovada, relacional, como chamam os organizadores. Como resultado, o que a mudança de foco permite ver são as conjunções entre o trabalho e a religião com o crime, a interconexão de programas sociais com mulheres, famílias e políticas estatais. Novos cenários de direito, expansão do consumo, mobilidade social e luta por reconhecimento são constatados.
Vistas em conjunto, as pesquisas anunciam a dimensão transversal do conflito que vem acompanhando as transformações em curso. Os processos atuais verificados em territórios periféricos apontam para um cenário híbrido: a experiência religiosa pentecostal, em lugar da teologia católica, não está completamente dissociada do universo moral do crime; os postos de trabalho fabril, antes pensados como os pilares do projeto de vida operário, foram substituídos por ocupações informais, ilegais e também ilícitas; e ainda, se antes se constatava a falta de políticas estatais nas periferias, hoje inúmeros programas sociais marcam a presença capilar e excessiva do Estado.
Os trabalhos de campo realizados em quebradas, ONGs, associações, albergues e favelas colocam à prova que uma apreensão sensível, tal como fizeram os autores, é capaz de lançar sobre as periferias novas perspectivas analíticas.
Mariana Medina Martinez. [Leia no site do Le Monde Diplomatique Brasil].
Two major-events — the 2014 World Cup and the Summer Olympics in 2016 — as well as its recent economic growth have recently put Brazil under the spotlight of the international media. With a nominal GDP of $2.48 trillion, Brazil was ranked as the sixth largest economy in 2011, according to the IMF (2012). While the European Union is focusing on austerity and public spending cuts, in Brazil there is a ‘new middle class’, composed of millions of people who now have access to goods and products that would have been unimaginable before. Policies that encourage consumption, such as tax cuts and increased access to credit, has helped to keep the economy growing (Yaccoub, 2011).
Despite this good economic moment, according to data from the UN, Brazil had the 8th worst position amongst 187 countries in 2011, in terms of income distribution (BBC, 2011). Although the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) has shown some achievements in reducing social inequality in the last decade, however, the richest 20 percent of Brazilians owned 57.7 percent of the country’s wealth in 2011.
Economic growth with social inequality would intensify the formation of a “divided country”, with rich and central areas in opposition to poor and socially problematic “peripheries”, as the New York Times described “the divided Rio de Janeiro: a third-world city with a first-world economy” (follow this link for a slideshow of relevant pictures).
However, the boundaries, as well as the relationship between “centre and periphery”, are not as clear as the media has usually described it. The book “Sobre Periferias: Novos conflitos no Brasil contemporâneo” (On periphery: new conflicts in contemporary Brazil), tries to demonstate this through case studies which combine meticulous description of several contemporary realities present in Brazilian metropolises, with profound theoretical analysis. The book, edited by Neiva Vieira da Cunha and Gabriel Feltran, collects some of the best material on “periphery” presented in the last three years at the annual conference of Anpocs (Brazilian association for research in the social sciences field), in Brazil.
Periferia (Periphery) is a term that easily emerges when talking about some critical situations, or places, present in the lives of large cities in Brazil. It could be seen as the stigmatized “city outskirts”, which in Brazil would be a mixture of favelas, self-built and “depredated” working class areas. However, the articles presented in this edited book refuse an easy dualism that opposes center and periphery. The texts converge on the recognition that the boundaries of the peripheries are far from being constituted only, or primarily, by spatial coordinates which creates fixed, homogeneous, and unified spaces subjected to the same cleavages. Boundaries can also be political, religious, social, administrative and cultural, being permanently reinvented through micro, and macro, relations of power.
Having this in mind, the authors present to the reader the varied forms of insertion in these “peripheral” spaces, places and relationships. Throughout, the book exposes the connection of “the urban marginalized”, their living spaces, religion, forms of collective action, crime and “popular moralities” with consumption, racial and gender relations, family, territory, housing projects and social mobility. “Peripheral relations” are intertwined with drugs, crime and violence, but also with politics, state management, art and cultural life.
The editors of the book have made an important effort to open up to the maximum the field of analysis, seeking to cover a wide range of interrelated issues which circulate around the notion of periphery. This is a more than important book to any scholar who intends to understand the contemporary dynamics, and conflicts, of the Latin American metropolis. In a context of changes, the book reveals the continuities and ruptures with the social dynamics of previous decades.
Acknowledgment: special thanks to Yanni Eleftherakos for giving his permission for the Rio photo to be used.
References:
BBC (2011) “Apesar de avanços, Brasil continua em baixa em índices globais”
IMF (2012) “Brazil”. International Monetary Fund
YACCOUB, Hilaine. (2011) A chamada “nova classe média”: cultura material, inclusão e distinção social. Horiz. antropol. [online]., vol.17, n.36 [cited 2014-01-15], pp. 197-231 .
Angelo Martins Junior is a PhD Student at Goldsmiths, University of London, and a member of The Work and Mobility Study Group (UFSCar), which is part of the Laboratory for the Study of Labour, Professions and Mobility (LEST/UFSCar).